A Mercadoria

Titulo do capítulo: CAPÍTULO 2 - HELLEN: A INFÂNCIA CONTINUA

Autor: Sandra Lymah

Comecei na escola nova, faltavam apenas três meses para eu fazer seis anos. Torci e rezei tanto, que Pablo ficou na mesma sala que eu, no primeiro ano. Mais tarde, ficamos sabendo que os papás dele conversaram com a diretora da escola nova e a convenceu de nos colocarmos juntos.

Graças a alguns amigos que vieram da escolinha, minha fama de valente e de minha amizade com Pablo, foi espalhada pela escola nova, então ninguém mexia com nenhum de nós dois, e muitos outros vieram fazer amizade com a gente, e assim montamos uma turminha. Isso tudo continuou quando estávamos no segundo ano. Bem… até a metade do segundo ano.

Três meses e poucos dias depois de eu completar sete anos, de repente, mamá sentiu uma dor forte de cabeça. Tão forte, que ela caiu no chão, se contorcendo de dor, e agarrando a cabeça com as mãos. Mamá gemia e gritava, se retorcendo no chão.

Peguei o celular dela e liguei para a emergência, e a ambulância chegou rápido, mais uma vez. Quando estávamos no hospital, liguei para os Mendonza, que foram para lá me acompanhar e falar com os médicos. Um deles, era o mesmo médico que estava lá na primeira crise de mamá. Então, como ele já sabia o que tinha acontecido com ela antes, ele repetiu os exames em sua cabeça, e em pouco tempo ele tinha o diagnóstico em mãos.

Depois de os Mendonza conversarem com ele, a mesma mulher que falou comigo da outra vez, veio ao meu encontro, na sala de espera. Mas dessa vez, tinha uma outra mulher junto. Essa outra mulher, era uma médica, e se apresentou como psicóloga. Não me lembro o nome dela. Nem da assistente social, que estava falando comigo pela segunda vez.

 — Olha, Hellen… — a assistente social começou a falar, depois de ter me cumprimentado. — a situação da sua mamá, parece estar pior agora do que esteve da última vez em que vocês estiveram aqui.

 — O que você quer dizer com isso? — eu senti meu corpo começar a tremer. Eu estava com medo do que ela ia falar.

 — Ela vai ter que ficar aqui no hospital. — a psicóloga respondeu. — Você tem algum lugar para ir? Tem com quem ficar?

 — Você pode ficar conosco, se quiser, Hellen. — a senhora Mendonza disse, antes que eu pudesse responder.

 — Eu gostaria de ficar com a minha mamá. — todos olharam para mim e, pelos seus olhares, parecia que achavam que eu não estava entendendo o que estava acontecendo. — Aqui no hospital. — completei, para que entendessem.

 — Olha, Hellen…

 — A minha mamá não tem direito a um acompanhante? — interrompi a psicóloga. — Eu não tenho outros parentes por perto. Minha mamá nasceu na França, era filha única e meus abuelos morreram num acidente de carro, quando ela tinha vinte e dois anos. Ela decidiu vir para a Espanha e se casou com o meu papá, menos de um ano depois de chegar aqui, segundo ela. E ela diz que papá foi trabalhar em outro país, sem saber que ela estava grávida. Mamá começou a trabalhar desde que papá viajou.

A psicóloga e a assistente social se entreolharam, me pediram licença e saíram por alguns minutos. Os Mendonza repetiram a oferta de eu ficar com eles, enquanto mamá fazia o tratamento, mas eu repeti que queria ficar com mamá, mesmo que fosse no hospital.

 — Hellen, você sabe o nome do seu papá? — a assistente social perguntou, quando as duas voltaram.

 — Diego Fernandes. Está na minha certidão de nascimento.

 — Tudo bem. Nós vamos tentar achá-lo, está bem? — assinto para ela. — Nós vamos deixar que você acompanhe sua mamá por uns dias. Se tudo correr bem, vamos deixando você ficar, até acharmos o seu papá. Assim que o acharmos, você terá que ficar com ele.

 — Mas eu nem o conheço…

 — Mesmo assim, terá que ficar com ele. — a psicóloga respondeu. — Um hospital não é lugar para crianças ficarem como acompanhante, Hellen. Tem muita coisa feia acontecendo aqui dentro. Coisas que uma criança nunca deveria presenciar.

 — Mas se mamá estivesse em casa e acontecesse uma dessas coisas, eu não iria presenciar? E se acontecesse comigo, eu estaria vivendo uma dessas coisas que eu não deveria presenciar?

 — Tudo bem, Hellen. A gente vai procurar o seu papá, e quando o acharmos, você terá um tempo para se acostumar a ele, está bem? Você passará algumas horas com ele por dia, até que se acostume, antes de ir morar com ele, está bem assim? — a psicóloga pergunta, enquanto a assistente social esconde o riso.

 — Mas… e se eu não me acostumar com ele? — pergunto estreitando os olhos.

 — Então teremos que achar outra solução.

 — Mas eu já dei a solução. Quero ficar com a minha mamá! Eu posso ficar como acompanhante dela.

 — Vamos ver, está bem?

Os dias foram se passando, e mamá recomeçou todo o tratamento. Descobri que ela não estava raspando a cabeça, pois os cabelos dela ficavam no travesseiro, todas as noites. Um dia, peguei um pouco dos cabelos dela no travesseiro, e guardei na minha bolsinha, sem ninguém ver. Prometi a mim mesma que, quando crescesse, mandaria fazer uma boneca com os cabelos dela. Nem sabia por qual motivo, isso tinha passado pela minha cabeça.

Mamá ficou totalmente careca de novo, e seu cabelo não estava crescendo de volta, quando eu fiz oito anos… e ela não tinha tido alta do hospital, também. Mas as enfermeiras me trouxeram um bolo, com vela, docinhos e salgadinhos. Cantaram parabéns para mim, elas e os médicos. Foi muito legal.

Naquele dia, mamá estava parecendo estar melhor. Mas não durou muito tempo. Três ou quatro dias depois, colocaram um tubo na boca de minha mamá, e me explicaram que era para que ela pudesse respirar melhor, pois ela estava com pneumonia. Disseram, também, que isso era normal, já que a químio que ela estava tomando, estava fazendo com que a imunidade dela enfraquecesse.

Levou mais de um mês para que eles retirassem o tubo da boca de minha mamá. Eu não vi colocarem, e nem tirarem. Nesses dois procedimentos, uma das enfermeiras me levou para a lanchonete do hospital, para tomar um refrigerante, e ficar conversando comigo por um tempo.

 — Por que você está me tirando daqui?

 — Para você tomar um pouco de ar puro e de sol… e um refrigerante, também. — ela sorriu para mim, e eu sorri de volta para ela.

Enquanto eu estava no hospital, acompanhando minha mamá, nem sempre minha mamá comia a comida, então eu guardava para eu e ela comermos mais tarde, pois às vezes dava fome em horários em que ninguém trazia comida, ou lanche.

Vários meses se passaram, até que a psicóloga veio falar comigo, no quarto da minha mamá.

 — Você está sozinha? Cadê a assistente social? — perguntei.

 — Não preciso que ela me acompanhe, Hellen. — ela sorriu para mim. — Na verdade, é ela que precisa que eu a acompanhe às vezes.

 — Ah… você veio me dizer que vocês acharam o meu papá? — olhei desconfiada para ela.

 — Nós achamos o seu papá há meses, Hellen.

 — E por que eu não estou passando tempo com ele para me acostumar? — franzi o cenho para ela.

 — Porque achamos que sua mamá está mais confortável com você aqui. — assenti olhando para a minha mamá, que estava dormindo. — Hellen, preciso falar uma coisa muito séria para você. — olhei para ela, nesse momento. — Os exames mostram que sua mamá não está melhorando.

 — Vocês não vão parar o tratamento dela, vão?

 — Não, querida. Ela vai continuar sendo tratada. Você se lembra do que a assistente social falou para você, quando a sua mamá desmaiou, há três anos?

 — Que minha mamá tinha uma bolinha na cabeça. Do tamanho de uma ervilha seca. Que o tratamento daquela época iria funcionar. E o médico disse que não podia retirar, que mamá poderia virar um vegetal, se alguma coisa desse errado.

 — Muito bem! — ela fala assentindo. — Nós achamos o seu papá, pouco depois de sua mamá ser internada aqui, há mais de um ano. Mas agora, precisamos que você o conheça.

 — Mas, por que agora?

 — Porque não sabemos quando você terá que ir morar com ele.

 — Mas eu não quero ter que ir morar com ele! Não quero deixar a Espanha! Eu não quero deixar a minha mamá!

 — Querida, entenda! — ela pegou minha mão entre as dela. Meus olhos se encheram de lágrimas. — Não sabemos quanto tempo sua mamá ficará conosco. Enquanto ela estiver aqui, você poderá ficar, não importa o que aconteça. Mas quando ela se for, você terá que ir com ele…

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