Contrato Perigoso

Titulo do capítulo: capítulo um

Autor: Natalie Orsini


Já se foi uma tarde e o barulho ensurdecedor desse pinguim sendo chocado contra a mesa destruiu totalmente minha linha de raciocínio.

A criança rechonchuda estava batendo o brinquedo sem dó alguma sobre a mesa de centro, sorrindo atrevidamente, como se perturbar fosse um de seus hobbies favoritos. Sua mãe estava sentada duas cadeiras à direita, folheando uma revista de moda. E acho que não notara minha presença, até o instante em que limpei a garganta demonstrando meu desconforto. A mulher até mesmo se assustou. 


Será mesmo que passar dez dias sem dormir, vivendo apenas de café e cigarros poderia ter me deixado tão cadavérico?


Caminhei em direção a porta e quando cruzei, tive a certeza de estar sendo encarado por aquele protótipo de mãe. Fechei a porta encarando a garotinha, que agora mordia o pinguim de plástico como um vira-lata esfomeado, ela lembrava alguém de minha infância. Lembro que estávamos brincando na sala de estar enquanto o cheiro de bolo invadia toda casa, minha mãe e sua amiga Norma conversavam sobre receitas enquanto aquela garota insistia em roubar minhas bonecas. Sally as pegava e corria para escondê-las, dizia que garotos normais gostam de carros.

— Mãe! — ela gritava sem parar, abraçando a cintura de Norma — Ele fez de novo! Disse que vai arrancar meus olhos se eu pegar mais uma das bonecas.

Mary me repreendia sempre que eu ameaçava arrancar os olhos de alguém, dizia que era pecado e que crianças boas não brigavam com as outras. Acho que aquela moça da sala de espera deveria aprender com Mary.

— Você acha isso normal? — perguntou.

— Ele é apenas uma criança, Norma — apesar de seu tom sempre convicto, parecia ter dúvidas em relação ao meu comportamento.

Algum tempo depois, Norma foi enfim para casa me deixando à vontade com meus brinquedos. Voltei a brincar, retirei o vestido rosa da boneca e coloquei um que eu havia confeccionado dias antes, usei as maquiagens de Mary para arrumar aquela pele alaranjada e sem que ela percebesse, peguei algumas flores do jardim e quando Mary entrou na sala para qualquer coisa pude ouvir seu grito.

— Gus! — ela disse irritada — Vá para o chuveiro agora!

Mary estava assustada, me repreendeu mais uma vez e desligou a televisão num castigo que nunca entendi, eu realmente merecia um castigo por fazer um funeral para uma boneca sem cabeça?

Depois de passar um longo momento relembrando minha infância, respirei fundo e dei uma longa piscada, o celular vibrou no bolso dianteiro me lembrando de outros assuntos.


Vou comprar o presente agora, quando vier para cá me traga café - Claire às 15:35.


Vou me atrasar um pouco - 15:36.


 Logo depois de responder à mensagem resolvi voltar para sala de espera na esperança de que aquelas duas não estivesse mais ali. O silêncio estava ao meu favor, assim que entrei na saleta abafada e com cheiro de álcool em gel, vi a garotinha saindo da sala, quanto tempo fiquei no corredor? Entrei no consultório e fui fitado pela Srta. Streiner que parecia neutra como sempre. A princípio, ela perguntava sempre a mesma coisa e minha resposta era mais vaga que o metrô de MoonVille durante a madrugada.

— Como vão suas crises? — indagou analisando a forma com que eu me sentava.

Respirei fundo e tentei ficar confortável, mas aquela poltrona parecia ser feita de pedra.

 — Eu sinto como se ela fosse me apunhalar a qualquer momento.

 — Apunhalar? — questionou sem parecer angariar respostas — Como em uma traição específica?.

Streiner queria que eu refletisse e realmente o fiz. Aquela simples palavra fez com que meu cérebro me acertasse com um punhado de incertezas. Ajeitei a posição na poltrona enquanto a psicóloga anotava qualquer coisa.

— Ela é uma boa pessoa, mas…

— Como vão as coisas na cama?

Porque todos acreditam que os problemas do mundo são envoltos à relações sexuais? Soltei ar pela boca, em uma situação como essa, qual seria a melhor resposta?

— O que ela disse na sessão de quinta? — vi-me indagando.

Srta. Streiner cruzou as pernas e coçou a garganta, aquele era um sinal claro de que entreguei as coisas.

Apesar dos quarenta e tantos, Katy era uma mulher bastante formidável. Olhos castanhos e pele bronzeada pelo Sol, indicando suas recentes férias de verão. Os cabelos eram de um tom acobreado com alguns fios brancos. 

— Eu não creio que seja uma traição por amor, Srtª Streiner.

Não saberia dizer exatamente o que passava em minha mente naquele instante, mas a breve ansiedade de finalmente acabar com a sessão me dominou e, quando finalmente aconteceu, fugi como uma criança assustada.

Diferente de toda estrutura de MoonVille, com seus prédios altos e construções vitorianas em um estilo tão gótico, a casa dos Bennet era colorida em excesso, trazendo uma estranha sensação de não pertencimento. Peguei o molho de chaves cruzando o jardim recém aparado, adentrando o que tinha se transformado praticamente na minha casa nos últimos meses. Foquei minha atenção na escada, cheguei a primeira porta do segundo andar onde deveria encontrar Claire fundida aos lençóis. Tudo sobre aquela cena parecia ter saído diretamente de um filme. A forma com que seus longos cabelos louros se espalharam pela cama, os olhos escuros como um par de jabuticabas se mantivera fixo em cada passo meu.

— Estou morrendo — ela disse assim que entrei no quarto.

— Comprei uma câmera nova — comecei sentando ao seu lado e largando a mochila no chão — E comprei seu café.

Claire pegou o notebook e me entregou enquanto eu retirava um dos cafés e lhe entregava, como numa troca. Comecei minha pesquisa logo depois, sentindo a mão dela passar por minha barriga para enfim pegar a sacola com os donuts, era tão difícil pedir para eu pegar? Cocei a nuca e continuei o trabalho enquanto sentia seu perfume suave invadir todo o ambiente.

— Você está respirando no meu pescoço — disse a observando se afastar.

— Eu realmente estive pensando a respeito e a ideia de você ir sozinho não me agrada.

— Você não precisa comparecer ao evento se não quiser, Claire. 

— Eu sei — retrucou sugando os dedos a fim de se livrar do chocolate — mas gosto do ritual do casamento, da decoração e de todas as promessas.

Mas diferente do que achou, acabei por não esboçar nenhuma reação, afinal tinha um trabalho para finalizar. 

— Você viu os noticiários? — perguntou mudando o foco, apenas neguei com a cabeça e vi meu espaço invadido mais uma vez. 

Claire se aproximou o suficiente para seu braço roçar nas minhas coxas, rapidamente fez uma pesquisa e mostrou um vídeo que eu já conhecia.

A polícia está com três meses de investigação, cada semana encontram um novo corpo pelos parques da cidade, o padrão é sempre mesmo: o corpo fica alinhado num ângulo reto, o braço direito sempre movido delicadamente onde indica um buquê de flores da mesma espécie como uma assinatura, o mais interessante é que em todas as vítimas, falta um fígado.

A loira levantou pouco tempo depois, saiu do quarto me deixando finalmente confortável o suficiente para trabalhar, no fundo ela sabia que fazíamos um trabalho melhor quando estávamos sós. Passei tanto tempo ali que não vi a hora passar, minha namorada já tinha fechado a floricultura e estava voltando para o quarto enquanto começava a se despir.

Quanto mais a encarava, mais impressionado ficava com sua beleza exorbitante.

Bennet tinha uma pele extremamente pálida como a de uma boneca de porcelana, os fios loiros claros caíam abaixo da cintura sendo extremamente lisos e seus olhos eram escuros como um par de ônix. 

Gostava do formato de seu corpo esguio como uma lança, seios medianos e a cintura deveras fina, pintas espalhadas pelo corpo e lábios rosados. Ela é minha boneca viva.

— Como vai o progresso? — perguntou de dentro do banheiro, enquanto escovava os cabelos e montava uma espécie de coque.

— Indo. 

— Você quer se divertir hoje à noite? — sugeriu ao voltar ao quarto, me procurando apenas para fechar o zíper de seu vestido. 


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