Liffity - Além do arco-íris

Titulo do capítulo: Capítulo 2 - Sonho e realidade

Autor: Ana Maitê


12 anos antes



Cristal e Rubi completavam 3 anos. A festa era reservada apenas para uma seleção muito bem escolhida a dedos do rei, muitos das quais as meninas não conheciam. Mas não importava, eram apenas crianças, nem ao menos se lembrariam desse dia, embora nenhum adulto ali presente jamais fosse se esquecer. Julia, a única e melhor amiga das meninas, que todos sabiam ser um prodígio com seu dom de profecia, falou assim que viu as amiguinhas:

— Ainda hoje se dará a conhecer os dons daquelas que são escolhidas para arrumar a bagunça.

E então no mesmo dia, diante dos olhos dos convidados, Cristal e Rubi mostraram ser não apenas poderosas, mas deusas da água e do fogo, do frio e do calor, que poderiam controlar o mundo se assim desejassem. 

E somente depois de muita discussão, e apelo dos pais para seus superiores, é que decidiram que o melhor para as irmãs era permanecerem juntas até o fim, mesmo que isso implicasse o fim de tudo.



No presente


Como de costume, ao acordar, Cristal ficou de olhos fechados, pensando naquele horrível pesadelo que ainda fazia sua cabeça rodar. Ainda assim, percebeu, o sonho tomou uma proporção um tanto diferente do normal e ela conseguiu dormir uma noite inteira. 

Ao abrir os olhos, percebeu estar no quarto da irmã, Rubi, e estava deitada ao seu lado. Como e quando chegou ali, a adolescente não sabia dizer, mas no momento não era isso que estava a deixando intrigada. Sentiu uma náusea se contorcer dentro de si. Alguma coisa não estava certa.

— Rubi, tive um pesadelo horrível! — falou ao relembrar tudo, agora não tendo tanta certeza assim de que tudo não passou de um sonho.

— Sonhou que fomos sequestradas por seis homens encapuzados totalmente malucos? — Rubi a olhou com a mão em baixo da cabeça, sua expressão demostrando o mais puro tédio; há muito tempo já estava acordada.

 Não era essa a reação que a outra esperava, mas ela se surpreendeu com suas palavras. Se questionou se já tinha contado o sonho e não se lembrava. Ou se a irmã também, além do poder do fogo, podia ler pensamentos. Ainda lhe custava acreditar que haviam se deixado serem sequestradas.

— Como você sabe? Também teve esse sonho esquisito? — Ela queria muito que a irmã tirasse a expressão sombria, agora cansada do rosto.

— Olha! — Rubi falou ao puxar o cobertor e Cristal ver que estavam com a mesma roupa que iriam ao evento. — O incrível é que estamos no meu quarto! Ou uma réplica dele, sei lá.

Rubi também estava confusa, a irmã percebeu.

— O que é isso? — Cristal perguntou ao se levantar. — E quem é esse homem? 

 Sim, havia um homem sentado sobre uma cadeira com uma arma na mão, não estava apontando para elas, era mais como se estivesse brincando, ainda que alerta às reações das irmãs.

— Já perguntei, mas não responde. — Rubi estava entediada. — Vai ver é uma pegadinha, ou sei lá o que.

— É sério? Vai nos manter aqui trancadas sem nenhuma explicação? — Cristal disparou num surto, mesmo sabendo que não conseguiria acompanhar as respostas. — E essa arma? Qual o sentido dela? Tem medo de nós duas por acaso?  

Cristal riu-se de si mesma após fazer a última pergunta, afinal, quem teria medo de duas adolescentes mimadas de quinze anos? 

— Sim, não, ah... proteção e sim. — respondeu o homem mecanicamente, embora seus olhos, muito azuis, estivessem atentos.

— Quê? — perguntou ela de novo sem entender o sentido das respostas, sabia que deveria ter perguntado uma coisa de cada vez e esperado, não era uma boa observadora quando estava nervosa.

— Proteção? De quem e para quem? E por que tem medo de nós? Somos duas meninas indefesas. — Rubi aparentemente sempre foi mais esperta que a irmã no quesito observação e percebeu que talvez daquela vez as coisas pudessem não ser tão simples como era comum nos casos de sequestros de pessoas conhecidas.

Isso só demostrava que ele as conhecia mais do que imaginavam.

— Primeiro têm que tomarem café da manhã. — O homem acenou para a mesa de desenhos de Rubi onde estava uma bandeja com o suposto desjejum. — No banheiro — apontou a porta que sabiam exatamente onde estava, já que aquele era o quarto da primogênita —, tem produtos higiênicos essenciais. Depois virá alguém para explicar o que está acontecendo. Com licença. 

  Que tipo de sequestrador pede licença para seus reféns, se perguntaram.

— Se precisarem de alguma coisa, estarei na porta do lado de fora.

Aquele homem era sinistro. Ele saiu e Cristal pôs-se a olhar para a irmã que estava muito pensativa. E não era para menos. As coisas não estavam certas. 

O motorista, podia ser ele que armou aquele sequestro? Cristal nunca confiara nele, mas confiava que seu pai iria dar um jeito nos sequestradores e também na vida daquele ser insolente. E ela queria ver tudo de pertinho.

A jovem se levantou e observou o quarto com curiosidade. Estavam em casa? Não, o jardim era diferente. Da janela podia se ver um lindo roseiral. Estavam trancadas em uma réplica de um quarto com sequestradores malucos. 

“Interessante”, pensou Cristal, voltando a se sentar na beirada da cama com sua calma infinita, enquanto a irmã repassava lentamente em sua cabeça a última hora vivida.

Ela havia acordado com a mesma sensação estranha do dia anterior. Acendeu a luz e procurou por seu celular.

 "Hoje é sábado, não é? Cadê meu celular?"

 O aparelho não estava lá.

— Procurando algo? — Um homem encapuzado estava seu precioso celular.

— Quem é você? — perguntou assustada, pronta para torrar aquele ser. Então percebeu que não foi um sonho, baixando assim o nível de sua temperatura, era necessário cautela, saber o que eles sabiam e o que procuravam. — O que vocês fizeram?

— Não tocamos em vocês se quer saber. —  Ele era arrogante, Rubi soube naquele momento que seus dias ali seriam agitados. — De nada, mas não agradeça ainda.

— Vocês vão apodrecer na cadeia! — falou a bela rangendo os dentes. Sentiu o calor emanando, mas logo retrocedeu. — Vou acabar com cada um de vocês!

— Veremos — ele se levantou e deu um passo em sua direção, fazendo com que seu coração desse um salto. — Não brinque com mais fogo do que pode suportar, princesa, e não me ameace, você não sabe do que sou capaz — gesticulou com a mão para onde estava a irmã inconsciente.

— O que vocês querem? — Ela sentiu as lágrimas vindo, a raiva de ouvir aquele apelido ridículo vindo novamente daquele ser, mas não lhe daria o luxo de ver nenhuma sequer.

— Não cabe a mim responder essa pergunta — voltou para seu lugar, colocou o celular no bolso e pegou sua arma em cima da mesa. — Descanse, é o melhor que pode fazer.

— Droga! — A garota se jogou novamente em seu travesseiro, frustrada. A irmã, que dormia como uma pedra, não acordou.

Rubi olhou em volta. Aquele quarto era idêntico, mas não era o seu. A riqueza de detalhes era gigantesca, quase que inacreditável. Se não tivesse visto a casa onde entraram, diria que estava em sua própria casa. Mas por que tudo aquilo? 

"Meu pai já deve estar à nossa procura", pensou. 

E ela sabia que ele não deixaria um sequestro barato. Quem aqueles bandidinhos pensavam que eram quando resolveram se meter com a sua família? Ela conseguia ver um juiz qualquer dando uma sentença enorme para eles, e é claro que ficaria muito feliz em ver a cara de cada um deles nesse dia. Se achavam que iria facilitar a vida deles ali, estavam muito enganados. Nunca foi de ter medo e eles não a intimidaram, apenas sabiam seu ponto fraco.

Mas se queriam brincar, teriam que aguentar. Um inferno seria pouco depois de dois ou três dias, assim que a jovem se acostumasse com a rotina deles. Mas antes deveria pensar em sua irmã primeiro. Não poderia deixá-la surtar.

 “Eu não posso surtar.”

Sair daquele local não seria difícil se não tivessem que seguir as instruções de seus pais o tempo inteiro. Eram instruções aparentemente tolas para duas meninas cheias de poder, vida e energia como elas, mas ainda assim, obedeciam. 

A primeira de todas era não agir precipitadamente e a segunda era manter a discrição sem importar o custo. Isso significa que deveriam antes de tudo descobrir o porquê estavam ali e dar um jeito de sair sem que descobrissem o que eram.

A terceira e última instrução era não se deixarem ser manipuladas por ninguém. Talvez fosse a mais importante, já que se alguém tivesse controle sobre elas, poderia simplesmente fazer um verdadeiro estrago.

Cristal acordou e reagiu muito bem. Melhor do que ela, podia dizer.

 Quando o homem as deixou sozinhas, Rubi se levantou e as analisou. A irmã pôs-se a observar o ambiente. Ela não fez isso porque já sabia que eles queriam enlouquecê-las, pois todas as suas coisas estavam lá. Ela só queria que tudo aquilo acabasse logo.

— Então? — Cristal perguntou, tirando-a de seu devaneio.

— Então nada — respondeu, frustrada, deixando-se cair novamente em seu travesseiro. — Apenas dance conforme a música. Você vai primeiro ou eu vou? — Apontou para o banheiro.

— Eu vou. — Cristal andou graciosamente até a porta, a abriu sem tocá-la. Ainda que tudo aquilo soasse familiar, era apenas uma ilusão, ela sabia. Quando viu que o cômodo era seguro, entrou e fechou a porta atrás de si. 

“Pelo menos não estamos jogadas em um cubículo pútrido com um balde para necessidades”, pensou Rubi ao ficar sozinha no amplo quarto.

Foi até a janela, e como quem não quer nada, liberou penas uma faísca de seu poder, que era o suficiente para derreter qualquer barra de ferro puro. O material nem ao menos se alterou. Soltou uma chama mais forte, mas continuava do mesmo jeito. Seja lá quem fossem, os sequestradores sabiam o que estavam fazendo. 

Cristal não demorou. Voltou vestida em um vestido simples, leve, uma sapatilha macia, o cabelo cheirando a seu xampu de morango, como o de costume.

— Seu closet está renovado pelo menos — ela falou passando a toalha nos cabelos.

— Então não estão esperando um resgate — Rubi concluiu ao chegar na porta do banheiro.

 Para Rubi aquilo não poderia estar certo, além do quarto, seu banheiro era idêntico ao seu.

 Pensou que talvez fossem eles fãs enlouquecidos ou espiões. Seu pai possuía a maior marca de vestidos de grife de toda a Europa e América Latina, e apenas elas abriam os lançamentos de todas as coleções. Rubi então desejou que seu pai fosse como muitos na mídia que escondem os filhos até mesmo de sua sombra para preservar a identidade deles.

Terminou o banho o mais depressa possível e voltou para o quarto. Não poderia se demorar muito e deixar a irmã à mercê de nenhum estranho.

Não demorou e outro homem, também sem mostrar o rosto, entrou no quarto. As irmãs permaneceram sentadas em um lado da cama, tentando manter uma certa distância, por cautela. O homem sabia do que eram capazes se ele não conseguisse manter a conversa em um ritmo ao menos civilizado, mas ainda assim optou por entrar ali desarmado.

— Calma, não vou fazer nada a vocês — sua voz era calma, o que causava ainda mais irritação em Rubi e mais desconfiança em Cristal. — Podemos conversar? 

— O que querem? — perguntou a gêmea mais velha, ríspida, sem disposição para ceder.

— Vocês não comeram nada — falou o homem ao olhar para a bandeja em cima da “mesa de desenhos". — Vão adoecer, sabem que não podem ficar sem se alimentar.

— E por acaso você se importa? — perguntou Rubi com tom de raiva. Se perguntou se seria possível que queriam dar uma de bonzinhos?

— Nem imagina o quanto. Podem comer, não tem veneno. E também não tem droga. Se quiséssemos fazer algum mal a vocês já teríamos feito.

 Rubi baixou um pouco a guarda.

— Veremos o que a justiça dirá quando botarem as mãos em vocês! — Ela se levantou, esperando qualquer reação, mas nada veio. Em vez disso, ele se aproximou um pouco, de modo que a jovem pôde ver o castanho de seus olhos bem definidos.

— Aqui nós somos a justiça — ele falou. — Sigam as regras e ninguém sai machucado. 

 "Sigam as regras", era tudo o que todos diziam, no entanto,...

— De tanto seguir as regras, viemos parar aqui! — Rubi também deu um passo em sua direção, um descuido dele e ela tiraria seu capuz. 

Ele permaneceu por mais alguns segundos parado, desafiando-a. Mas antes que ela terminasse de articular seu movimento, retrocedeu.

— Nada do que tentarem vai funcionar — ele olhou para a janela, e mesmo que não houvesse nenhuma marca, sabia o que aconteceu ali. — Poupem seus esforços. Não faremos mal nenhum a vocês, a não ser que seja necessário.

Rubi também recuou um passo, ficando mais próxima da irmã.

— Então o que querem? Por que todo esse mistério? — Cristal falou muito calma, como alguém que falava sobre o tempo.

O homem mostrou um vídeo em um tablet. Era do pai das garotas, falando que iria ficar tudo bem e que logo se veriam.

"Filhas sei que estamos passando por um momento não muito propício para a família. Perdoem minha estupidez, mas não está no alcance de minhas mãos encontrar vocês agora. Mas não se preocupem com nada, está tudo sob controle, fiquem calmas."

Essas foram as palavras dele no vídeo. As garotas ficaram revoltadas com o que viram. O homem percebeu a aura que se formou no local e decidiu que já era hora de sair dali.

— Comam! — foi tudo o que falou e saiu do quarto.

— Louco! — sussurrou Cristal.

— Isso não vai ficar assim! Uma hora o castelo de areia de vocês cairá e eu não terei dó de ninguém quando acontecer! —  Rubi gritou e deu um murro na porta.

— Sumiu! — Cristal falou.

Rubi olhou para ela para perguntar do que estava falando, mas entendeu quase que imediatamente. A magia. Ela a sentia, mas era como se tivesse desaparecendo aos poucos até não restar um único fiapo. E sem magia...

— Acho que precisamos do café da manhã — falou.

Cristal assentiu. Se sentaram e comeram como duas damas, lenta e vagarosamente. Se reclamassem da comida, estariam sendo injustas, mas não se permitiram comer além do necessário para que seus corpos se mantivessem de pé.

Cristal estava absorta em seus pensamentos, se perguntando onde foi que erraram para estar ali. Rubi percebia que apesar de aparentar, a irmã não estava tão calma assim. E ela se colocava na responsabilidade de protegê-la. Na noite anterior, queriam saber quem era Cristal. A qualquer momento poderiam voltar para fazer a certificação e Rubi não podia permitir isso. Se era um jogo, então tinha que aprender as regras e jogar.

Ela teria que articular um plano. Queria sair dali de qualquer forma. Não importava o que tivesse que sacrificar, mesmo que o próprio pai parecesse não estar do seu lado.

 Analisou novamente cada palavra que foi dita naquele quarto em pensamento. Não podia contar muito com o intelecto da irmã, que ainda acreditava que pessoas boas existiam por trás de todas as máscaras, mas pelo menos podia confiar que fosse no que quer que pensasse, ela iria ajudar e isso a acalmava.

Enquanto isso, em outro cômodo da casa, três homens se reuniam para discutir o último acontecimento.

— Como foi? — perguntou o primeiro deles, o mais novo e o mais centrado no trabalho, mas que não concordava com o que estavam fazendo de forma alguma.

— Como imaginamos. A garota do fogo vai cumprir com sua promessa de nos deixar em seu inferno particular. A outra, pode aparentar estar calma, mas está desesperada — respondeu o homem que há pouco tempo estava com as meninas. Ele, assim como Cristal, sempre aparentava estar calmo, mas tinha mais experiência que a garota e por isso sabia impor limites em seus companheiros sem que quase todos o questionasse.

— Correm algum risco? — perguntou o terceiro homem, tomando um café. Desde que chegara na região gostou da bebida de tal forma que ficara viciado.

— Não, mas tive que usar a pedra para aniquilar seus poderes e obrigá-las a comer. Não garanto que vai funcionar.

— É sua obrigação mantê-las com o psicológico perfeito! — falou novamente o primeiro. — Eu sabia que as chances de isso dar certo seriam quase nulas.

— Eu faço o que posso! Você se sentiria seguro estando na réplica do seu quarto, totalmente à mercê de estranhos?

— Eu disse que era contra isso a todo o momento — respondeu o jovem. — Um passo em falso e anos de treinamento serão em vão!

— Cuide você delas — o homem falou para o terceiro —, ele não é de inteira confiança, ainda é uma criança.

O jovem bateu com o punho na mesa. Já tinha dezessete anos, não era nenhuma criança. O mais velho afagou seus cabelos em um gesto carinhoso e saiu, mas antes de fechar a porta, falou:

— Lembrem-se que seguimos ordens, rapazes.

O mais jovem se sentou em uma cadeira e passou a mão no rosto. O outro, seu irmão, apertou seu ombro, dando-lhe apoio.

— Nós já sabíamos que não seria fácil. Vamos fazer nosso trabalho, com sorte logo estaremos em casa.

O jovem assentiu. Sabia desde o início o que teria que fazer e embora no começo seu trabalho fosse interessante, agora sentia que estavam afundando cada vez mais. Pensou em como seria ter uma vida como daquelas meninas, que, ainda que com restrições, podiam ir e vir quando quisessem e agora estavam ali trancadas, como ele ficou praticamente toda a sua vida. A única pessoa que gostava dele por ser quem ele era estava prestes a odiá-lo pelo resto de sua vida e ele não poderia fazer nada.

— É, com sorte, logo voltaremos para casa — falou para si mesmo e pôs-se a monitorar as câmeras externas.


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