Meritíssimo Juiz

Titulo do capítulo: I

Autor: Joana Coelho

— Tá! Legal! Como se usa isso? — peguei a caixa comprida na mão e virei de um lado ao outro.
— É para você? — quase pulei para trás quando a senhora que estava atrás do balcão, me olhou por cima dos óculos e se aproximou.

— Nã-não. Claro que não! É para a minha mãe, acho que vou deixar de ser filha única. — dei uma piscadinha safada.

— Sei. — ela me encarou com desconfiança. — É só a sua ‘mãe’ fazer xixi em cima, se der uma faixa vai ser negativo, se forem duas, positivo.

— Vou explicar para ela. — puxei a sacola da mão da mal-humorada e saí pisando duro.

Nunca havia reparado como a minha casa ficava longe do centro da pequena cidade. Minha casa era só uma forma de dizer, na verdade, eu morava em um cômodo no fundo de uma empresa com o meu pai.

Minha querida mãe não aceitava a situação, dizendo não aguentar perder tudo e ser colocada na rua. Então, um belo dia foi ao centro da cidade e nunca mais voltou. Me lembro de ainda esperar a volta dela por quase um ano. Era difícil para uma menina de quatro anos, ser deixada aos cuidados do pai, mesmo que ele fosse um bom pai eu queria a minha mãe.

Só não ficamos na rua porque o Senhor Orlando, patrão do meu pai, nos flagrou dormindo na guarita, num dia de frio. Àquela hora da manhã, não me acordou, tirou o casaco pesado o e jogou em mim. Depois que acordamos, Orlando quis conversar com meu pai. Não sei até hoje sobre o que falaram, só que daquele dia em diante eu teria um teto, minimamente decente, para dormir. Morava em um espaço pequeno, dividido por um banheiro, até que estava feliz se não fosse a conversa que eu ouvi outro dia. A empresa fora vendida e Orlando iria se mudar para a Inglaterra.

Agarrei o pacote e passei pelo Amadeu, colega do meu pai. Um negro alto e simpático, sempre com palavras engraçadas. Menos hoje, pelo menos para mim.

— Pai? — escondi o pacote na bolsa. — Pai? — passei pela porta e continuei a caminhar.

— Surpresa! — dei um pulo para trás, quando meu pai praticamente pulou em mim segurando uma sacola enorme nas mãos. — Pega, é pra você.

Ele estendeu a sacola para mim. Não me lembrava o motivo até ver a cor do vestido: o baile da escola. Claro que me esqueci, afinal, não tinha dinheiro para nada mesmo. Não sabia como meu pai tinha ficado sabendo, já que eu mesma tratei de esconder.

— Não precisava, eu nem ia mesmo. — segurei firme as lágrimas.

— Nem pense em chorar. Recebi uma ligação hoje, você não tinha confirmado sua presença na festa, não é justo parar a sua vida por minha causa. — senti as mãos do meu pai no meu rosto.

— Obrigada, pai. – fingi um meio sorriso.

— Seu namorado vai com você. — ele fechou a cara como todas as vezes que tocava no assunto. — Sabe o que penso sobre ele, e não pense que o chamei porque mudei de opinião. É só que, hoje, é um dia especial para você.

Sabia muito bem, melhor ainda, depois de uma briga feia que tiveram por algum motivo que nem eu sei. Desde esse dia, meu namorado não entrava em minha casa e meu pai não fazia questão de chamá-lo. Continuei minha caminhada até o banheiro e só respirei quando fechei a porta e me olhei no espelho, minha bolsa ainda estava no meu ombro, meus olhos começavam a encher de lágrimas.

Uma criança! Tudo o que eu via no espelho, era uma criança. Não era alta, cabelos castanhos e olhos castanhos escuros, boca pequena e carnuda. Não tinha um corpo de mulher, quem com a minha idade teria tal corpo? Nem sei porque caí na ideia do Davi.

— O importante é o amor. — joguei água no rosto.

Horas mais tarde meu pai estava me levando até a escola, eu nem sabia como processar tudo o que me aconteceu naquele banheiro. Ele parou o carro e eu respirei fundo.

— Onze horas, esteja aqui, moça. — meu pai desligou o motor barulhento do carro velho e enferrujado. — Entra logo, está começando a chover.

— Tá bom, pai. — agarrei a barra do vestido e olhei para a escola toda iluminada.

Ao abrir a porta do carro, dei de cara com Davi de terno e cabelo penteado. Havia me esquecido de como ele era lindo, todas as curvas do rosto ornavam com o cabelo loiro, cor de areia, e olhos verdes. Ainda sentia vergonha dele, bastou um pequeno toque no meu ombro para minha pele se arrepiar.

Meu pai não esperou por uma tentativa de contato e arrancou com o carro.

— Você está tão linda! — Davi me girou, segurando-me pela mão. — Combinou com essa cor, parece uma princesa.
— Não é para tanto. — abaixei os olhos. — Davi, temos que conversar.

— Pode ser depois? A noite está tão linda, e você tão perfeita. Vamos curtir um pouco. — ele me puxou rumo à entrada da escola.

O cheiro de perfumes e suor me fez ter calafrios. Pessoas falando alto, outras dançando, eu não queria estar aqui, nunca quis. Consegui me mover e fui atrás do Davi, dançamos bastante e eu só pensava em segurar a respiração para não vomitar.

Reparei que ele olhava muito para algum canto, já estava meio bêbado, e eu me mantive somente com água.  Até que a massa dançante aumentou, nos perdemos na pista de dança. Dei algumas voltas, mas ele parecia ter virado poeira. Senti um puxão violento no braço, ao olhar para trás, vi um garoto alto e forte, não me lembrava dele até o idiota tentar passar a mão no meu corpo.

— Me solta, Isaac! — libertei uma mão e dei um tapa no rosto dele. — Idiota!

— Sua vadia! — ele estava visivelmente bêbado. Acabei levando um empurrão e caí em cima de uma garota.

Sentia tanta vergonha que me levantei e corri até o banheiro. Contudo, antes de entrar reconheci uma voz. Davi estava bem ali, e não estava só, muito menos com amigos, estava amassando uma garota num canto sujo. Voltei do torpor inicial e com toda a força que ainda tinha o puxei.

— Marjorie? — Davi empurrou a menina para o lado. — Mas…

— Não quero brigas, Davi! Na verdade, estou mais que cansada de você! — não conseguia falar alto, ainda bem que ele conseguia entender, caso contrário eu não iria repetir. — Se você estava com ela é porque eu já não significo mais nada pra você.

Me afastei aos poucos, enquanto ele tentava me puxar e dizer as malditas frases clichês. Como “foi sem querer”, ou, “me perdoa, eu ainda te amo.” Não conseguia imaginar uma vida com ele, não sabia perdoar tão fácil, acho que, uma coisa dessas, ninguém esquece. Mas ele tinha que saber. Não me lembro onde eu vi às horas, só sabia que eram dez e meia, dali a meia hora meu pai estaria me esperando do lado de fora. Meia hora era muito tempo, mesmo com a chuva começando a cair mais forte, não me importei em ir embora. Tirei a sandália e pisei no chão frio. Ainda tinha gente chegando, foi difícil passar. Atravessei a rua e corri o quanto conseguia, ou até ser puxada por mãos de alguém muito bravo.

— Onde você vai nessa chuva? — Davi tinha o cabelo molhado e cobrindo metade do rosto, o rosto ruborizado pela raiva e vergonha.

— Me esquece, Davi! — tentei puxar meu braço de volta.

— Não! Eu… olha, eu não sei muito bem o que aconteceu, gosto de você, pisei feio na bola. Por favor, Marjorie, me desculpa. — ele tentou se ajoelhar.

— Quero ir para casa. — me abracei. — Estou com frio, e muito cansada.

— O que está acontecendo? Você sai toda brava, e agora não quer mais falar comigo? — ele me forçou a olhá-lo nos olhos castanhos e se aproximou.

— Eu… — senti o hálito quente dele e desejei nunca perder essa sensação. — eu…

— Hum? — ele colou nossos corpos.

— Eu estou grávida.

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