Meritíssimo Juiz

Titulo do capítulo: II

Autor: Joana Coelho

Tempos atuais:


— Seis horas da manhã. Seis horas da manhã.

— Merda! — soquei o despertador falante. — Já vou levantar, cacete!

As luzes do quarto acenderam e as cortinas se abriram sozinhas, tinha esquecido que fui eu quem programou tudo, só para não chegar atrasada no escritório. Se minha cama tivesse a opção, teria me derrubado também.

Muita gente ficava boquiaberta, quando eu dizia onde consegui emprego, ainda mais, exercendo minha profissão recém-adquirida. Só não conto que sou obrigada a trabalhar até tarde, nos processos, e deixar tudo pronto para os mais velhos da empresa. Eu fazia todo o trabalho, e eles levavam o crédito. Na pior das hipóteses, ter que assistir julgamentos, só para anotar todas as artimanhas dos advogados mais caros, e isso me dava calafrios.

Normalmente, toda terça de manhã eu tomava café com o meu pai, depois ia trabalhar. Peguei o celular e digitei uma mensagem rápido.

“— Desculpa, pai. Não vou poder estar aí hoje, o dia vai ser corrido… as seções começam mais cedo hoje. Beijos. Te amo.”

Se não podia estar com meu pai, pelo menos correr eu podia. Joguei o celular na cama e procurei minha roupa de exercícios. Quando o vento frio me golpeou, pensei, só pensei, em voltar correndo e me jogar na cama, esperar o sol frio de Londres sair e esquentar, mesmo que minimamente, as ruas. Comecei minha caminhada, encontrei minha playlist favorita, aumentei o volume e desci a rua.

Sempre que podia, corria até o parque do condomínio e depois ficava sentada por uns minutos admirando a magnitude daquele lugar. Mas hoje não.

Nem tinha corrido três minutos ainda quando notei algo se movendo na minha direção. Pensei ter visto um filhote de dinossauro correndo até mim, fechei os olhos e os abri de novo, poderia ser a adrenalina me fazendo ver um bicho daquele tamanho, espumando pela boca.

O animal correu na minha direção e se chocou contra mim, de tal forma, que pensei ter morrido e voltado à vida em segundos. Fiquei deitada de costas, até ouvir passos correndo na minha direção.

— Moça? — continuei onde estava. — Senhorita? Me desculpa, você está bem?

— Hm? — desgrudei minha cara do chão frio e molhado.

— Me desculpa, sou novo aqui. Ele se soltou de mim e pensei que ele não fosse ficar tão bravo assim e…

— Entendi. Entendi, mas não precisa falar mais nada. — limpei as mãos e me levantei aos poucos, cada canto do meu corpo doía. — Só acho que, aquilo, deveria ficar preso por correntes.

— Aquilo se chama Harry. — não me importei de olhar para ele, até porque, meus cotovelos estavam parecendo um ralador. — Ele não fez porque quis!

— Ainda bem! Senão, agora você estaria juntando meus restos ao invés de me amolar com a ideia do seu mini dinossauro. — finalmente acabada a parte mais importante, resolvi olhar para o estranho.

O estranho parecia um… sei lá, não dava pra comparar com o que ele parecia. Cabelos negros, naturais ou tingidos, vai saber. Os olhos eram azuis. Ao redor dos olhos, os cílios eram tão fartos, que dava a impressão que ele passava lápis preto, tudo isso era bem pouco para o sorriso, ah sim, tipo pegador sabe? Aqueles caras que sorriem e fecham um tantinho os olhos, enquanto a boca exprime um sorriso meio torto. O famoso sorriso ladino.

Tentei não me impressionar, mas puta merda! O cara era perfeito, ou quase, se não começasse a rir de mim, dar gargalhadas, enquanto segurava a barriga.

— O que foi? Acha bonitinho o que o seu bicho fez? Eu poderia ter chamado a polícia para você, sabia? Te meter um processo grande! — nervosa, estava fungando o nariz. Ele continuou rindo ainda mais alto. — Fica rindo aí! Só não estranha quando seu monstro não voltar para casa.

Ele não parava de rir. Eu até poderia rir também, se não fosse o caso de estar toda ralada e moída por dentro, ter meu cabelo cheio de folhas e a tela do meu celular novinho rachada. Fui mancando até a minha querida casa e bati a porta, não precisei olhar no espelho para saber o motivo de tanta risada. Tinha perdido meu tênis do pé esquerdo, minha calça estava rasgada, e dava pra ver que minha calcinha era rosa, tinha também meu rabo de cavalo torto.

— Miserável! — tirei o outro tênis e passei direto pro banheiro.

O horror foi desembaraçar o cabelo e, pior ainda, calçar os sapatos com os pés machucados. Dirigi o caminho todo com lágrimas nos olhos. Ao chegar na empresa, meu amigo me aguardava, o dia sempre parecia amanhecer ótimo para ele.

— Bom dia.

— Só se for pra você. — peguei uma xícara de café e virei de uma vez na boca.

— Nossa. Por que está tão amarga? Caiu da cama hoje?

— Muita graça a sua, Benjamim. — juntei minhas coisas e peguei a chave do carro.

Tá legal que, dirigir meia hora com o pé inchado, foi horrível. Teve horas que eu chorava de raiva, mas cheguei bem. Benjamim, como bom amigo, estacionou o carro para mim, aliás, ele fazia isso desde os tempos da faculdade. Somos amigos há sete anos, nunca pensamos em namorar, acho que somos o tipo amigo-irmão, ninguém entende, nem mesmo meu pai. Ele é bonito no estilo londrino, alto, loiro com um par de olhos verdes, bochechas rosadas e um tanto fortinho. Já rolou um beijo entre a gente, mas foi estranho, desde então nunca mais tentamos.

— Vamos no meu carro. — ele passou na frente e abriu a porta para eu passar. — Deus me livre entrar num carro, com você dirigindo. Além do mais, quero saber o motivo de tanta raiva hoje.

Ainda bem que o elevador era bem na frente da minha sala, não tive que disfarçar muito para ninguém me ver mancando. Como sempre, fomos espremidos até o estacionamento e, depois disso, fomos o caminho todo em silêncio. Pra falar a verdade, eu não gostava nem um pouco de estacionamento subterrâneo, me dava a impressão de estar sendo observada, e que a qualquer instante, alguma coisa pularia na minha frente.

A porta do carro dele ficava aberta para uma emergência, ele dizia. Pulei no banco e me afundei o quanto pude.

— Vamos nessa, dona estressada. — Benjamim apertou minha bochecha. — Assim que o carro passar por aquele segurança, você me conta sua novidade e eu te conto a minha.

— Fechado. — bati na mão dele.

O carro nem cruzou o portão com o segurança e já virei e abri o jogo, contei tudo até depois que entrei em casa e, para minha surpresa, ele também riu, não tanto quanto o idiota, mas riu um bocado. Quando acabou, notei Benjamim um pouco tenso, só quando chegou no tribunal que ele resolveu abrir o jogo.

— Tenho um encontro hoje. — ele desligou o carro e me encarou.

— Que bom, Ben! Sério mesmo! — peguei no ombro dele. — Mas, por que você está inseguro?

— Não fui eu, quem marcou. Foi ela.

— Ela quem?

— A Isa. Ela… ela me encurralou. Sei que sofri um pouco com ela… — ele estava realmente aflito.

— Um pouco? Ela te fez sofrer, e muito! Aquela garota anda com todo mundo e você não merece isso Ben, não mesmo. — juntei minhas coisas e abri a porta do carro. Ele me segurou.

— E se eu não for?

— Ela vai sair espalhando pra todo mundo. — revirei os olhos.

— Mas eu não posso, não sinto nada por ela. — ele me segurou mais forte.

— Gosta de alguém então?

— Sim.

— Então diz pra ela, fala que você gosta de outra pessoa e pronto. — me soltei do aperto, cada vez maior, dele.

— Não estou seguro, quanto aos meus sentimentos. — ele titubeou. — Deixa isso pra lá, a audiência já deve estar começando e não podemos atrasar muito. E você tem razão, vou dizer tudo para ela. Tudo mesmo.

Ainda bem que acabou por aí, ele poderia muito bem, dizer coisas que mais tarde iria acabar com a nossa amizade. Benjamin tinha seus um metro e noventa, logo fiquei para trás mancando. Meu amigo segurou a porta e entramos juntos.

— Puta merda! — senti minhas pernas endurecerem.

— Está no tribunal, sabia? Pode ser presa por falar uma coisa dessas. — Ben falou no meu ouvido.

— Ben? Lembra o que falei? — ele me empurrou até o banco mais próximo.

— Sim. O cara… — ele parou. — Ah, não! Não me diz que é ele.

— Hm-hum! — confirmei.

Bastou um pequeno movimento meu, para confirmar a história, e o homem virou na minha direção. Ele arregalou os olhos só por um instante e, daquela distância, eu vi uma risadinha se formando no canto daquela boca safada.

— Ouvir dizer que ele foi transferido para cá, por causa de um julgamento na semana que vem. Dizem que ele é da Irlanda, o juiz mais jovem que tivemos. Acho que o nome dele é James O’Hare. Também falaram na empresa, que ele é muito mal-educado em pessoa, do tipo sarcástico ao extremo. Tem certeza que é ele?

— Toda a certeza do mundo. — ele olhou mais uma vez para mim.

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