O Último Show

Titulo do capítulo: (US) CAPÍTULO 1 - DISTRAÍDO

Autor: Sandra Lymah


Após alguns dias de sossego, os pesadelos voltaram e, estão mais intensos… muito mais vívidos hoje. Suspiro me sentando em minha cama, pensando que vou voltar a ter apenas duas horas de sono por noite, e cheias dos meus piores pesadelos! Olho para o relógio em minha cabeceira.

 — Wow! — falo desanimado. — Foram quase quatro horas dormidas… e ainda são quinze para as cinco da manhã.

Ignoro o vulto no canto, não preciso olhar para saber que ele está de volta, se é que ele deixou de me espreitar em algum momento. Não é porque eu não o vi por alguns dias, que ele tenha realmente se ausentando.

Sei que não vou dormir de novo, ainda assim, deito minhas costas no colchão, cruzo as mãos embaixo da minha cabeça e, olhando para o teto, começo a recordar toda a minha vida… o acabamento em gesso, me dá a tela branca perfeita, que vai passar as cenas da minha mente. A primeira cena começa a se formar…


Há trinta e quatro anos…

Chego da escola, e me sento no sofá com a mochila ainda em minhas costas. Mamãe e papai tão trabalhando, e ainda falta pelo menos três horas pra um deles chegar em casa, então começo a pensar na tarde de hoje.

Me assusto quando o gato sobe em meu colo, engulo seco e respiro fundo. Acaricio sua cabeça, pois ele não tem culpa… nem do que me aconteceu, nem de ter me dado susto. O susto é efeito do que passei, e ele não tem nada a ver com isso.

 — Oi, Ken! — sussurro para o bichano, que parece um bonequinho, por isso o seu nome.

Em resposta, ele esfrega a cabeça em minha mão, enquanto emite um longo ronrono. Isso sempre me faz sorrir, mas não hoje. Ganhei o gatinho dos meus pais, no meu primeiro dia de aula e, em um ano e meio, é a primeira vez que não acho graça em qualquer coisa que ele faça.

Ele vira a cabeça, me olha nos olhos, e esfrega seu corpo frágil pela extensão dos meus braços e minhas coxas. Com um miado baixinho, ele parece me dizer que sabe o que houve, ou que quer que eu diga a ele… como se eu pudesse falar sobre aquilo… na verdade, como se eu soubesse falar sobre aquilo!

Começo a me perguntar o que foi aquela coisa… com certeza eu estava sendo castigado, mas eu nem sei o que eu fiz! Lembro de cada momento do meu dia, e ainda não acho uma resposta. Tenho certeza de que me comportei bem de manhã e, quando os eventos da tarde surgem em minha mente, sinto que uma mão toca o meu ombro. O susto é tão grande que meu grito sai invertido.

 — Hããã… — é o som que faço, então tento sugar o ar enquanto hiperventilo.

 — Charles? — olho para a minha mãe, sentindo minha respiração totalmente descontrolada. — O que foi, filho?

Sentada ao meu lado no sofá, ela me olha alarmada, e com as sobrancelhas franzidas ao mesmo tempo. Olho para todos os lados, para ter certeza de que era a mão dela que estava me tocando há pouco. Engulo seco e me forço a abraçá-la.

 — Você entrou devagarinho… tão quieta, mamãe! — minha voz sai abafada, contra o peito dela, onde escondo o meu rosto. — Eu só assustei…

 — Querido, estou te chamando desde a porta… — ela beija o topo de minha cabeça.

Seus braços ao meu redor me confortam, suas mãos acariciam minhas costas por baixo da minha bolsa, e vou me acalmando. Me foi dito essa tarde, que sou um homenzinho, e que homens não choram, então, por mais que eu queira chorar, respiro fundo, reprimindo essa vontade avassaladora em meu peito, olho nos olhos da minha mãe e sorrio, como fui instruído a fazer.

 — Devo ter me distraído, pensando na escola. — me repreendo mentalmente, acreditando que ela possa associar uma coisa a outra, e trato de emendar. — As matérias estão ficando cada vez mais difíceis!

 — Eu te disse que matemática iria ficar complicado, meu amor. — ela me dá um sorriso compreensivo. — Nem tirou a mochila das costas… — ela tira minha mochila carinhosamente. — parece que você não teve um dia muito bom! — sua mão acaricia o meu rosto. — Quer comer pizza? — é o primeiro meio sorriso que consigo dar, desde o começo dessa tarde. Assinto para ela, sem mostrar os dentes. — Então, vai tomar o seu banho, que eu vou pedir para entregar, está bem?

Mesmo que ainda não mostre os dentes, meu sorriso se alarga enquanto eu assinto de novo. Noto que o meu banho também se torna um tormento… até a pizza de quatro queijos, o sabor que mais gosto, agora tem sabor meio amargo.

 — Não comeu nem o primeiro pedaço, filho! — meu pai, que chegou enquanto eu estava no banho, me olha franzindo o cenho. — Você está bem?

 — Estou preocupado com matemática… — falo baixinho, sem olhar em seus olhos, esperando que, assim como a mamãe, ele também acredite em mim.

 — Sabe que eu também tinha dificuldade com matemática? — levanto minha cabeça, e o vejo sorrir para mim. — O segredo é estudar bastante. Você pode vencer os números! Acredite, filho!

Agora eu sei o que é mentir… e não me sinto bem com isso. Meus pais sempre disseram que eu sou um menino bom, e que coisas ruins acontecem com meninos maus. E agora eu sei que, em uma dessas duas coisas, eles estão errados. Muito errados!

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