Das Cinzas aos Recomeços

Titulo do capítulo: 01 - A dor da descoberta

Autor: RHANYKELEM MONTEIRO DE ARAUJO

Hospital Regional do Amazonas

10 de fevereiro de 2016

A longa fenda produzida pela luz solar, cortando o meio da sala, não se comparava com o cenário de horas atrás. O tecido fino das cortinas esverdeadas raramente impedia os raios solares. A maca localizada no lado esquerdo era sempre a principal vítima, não escapava dos verões e tampouco do incomum inverno de Manaus. Em uma certa ocasião, tentaram fechar a imensa janela – a maior dentre todas do Hospital – mas foram barrados pelo médico.

“Essa janela oferece uma ótima vista da cidade”, argumentou quando o responsável pela obra apareceu, e ele estava certo. Era possível visualizar os telhados das casas em uma ordem semelhante às ondas. Ao fundo, a fachada do Shopping da Grande Circular se tornava um pequeno ponto laranja e se mesclava com o pôr do sol. No entanto, o pedreiro não demonstrou importância. “O senhor é quem sabe, doutorzinho. Depois não venha reclamar”, disse o homem de olhos cansados e mãos calejadas, com sotaque caboclo, saindo da sala de consultas resmungando que não havia nada a ser contemplado no mundo através daquela inútil janela.

– Uma perda de tempo.

O médico apenas riu, e desde então, a direção do hospital deixou de se importar com as reclamações das enfermeiras sobre a sala de consulta número 28. “Ele é quem trabalha, então que se vire”, disse a diretora, dando de ombros quando uma das enfermeiras começou a reclamar do calor insuportável meses depois.

– O senhor pode me dar o remédio? Estou morrendo de enxaqueca, ainda tenho que pegar dois ônibus para chegar à Zona Norte – disse uma jovem, tirando-o de seus devaneios.

– Desculpe, dona Sandra – ele olhou envergonhado. – Às vezes, fico admirando a paisagem e acabo me encantando pelo sol e como ele é magnífico.

– Sr. Leonardo, me perdoe, mas eu não me importo com o sol. É apenas uma estrela que nos queima literalmente ao meio-dia, e talvez seja culpa dele que eu esteja com tanta dor de cabeça. Ele não é nada e só existe pela permissão de Deus – respondeu a paciente irritada, fazendo com que ele apenas explicasse os horários dos medicamentos prescritos e as solicitações de exames de rotina.

Ele balançou a cabeça ao ver a paciente sair pela porta. A resposta dela o deixou pensativo. Como existiam pessoas insensíveis aos pequenos detalhes da vida?

Ele bateu com a caneta na mesa de madeira, organizando seus blocos de atestados, receituários, solicitações de exames e instrumentos médicos dentro de sua maleta de couro marrom. Seu turno havia terminado e, sem demonstrar pressa alguma, caminhou pelos corredores, desejando um “até amanhã” aos colegas de trabalho.

Trabalhava no Hospital Regional do Amazonas há pouco mais de dois anos como clínico geral. Apaixonou-se pela área da saúde desde a infância e sonhava em começar sua residência para se tornar um cirurgião, assim como sua mãe havia sido um dia. No entanto, adiava sua especialização com o objetivo de aproveitar seu casamento, já que havia se casado cedo demais e não desfrutou dos primeiros anos devido às noites de estudos intensos durante o curso de Medicina.

Seu celular vibrou pela segunda vez naquele final de tarde. Ele o retirou do bolso para ver o conteúdo da mensagem, mas sua expressão de felicidade deu lugar ao desânimo em seu rosto após terminar de ler. Sua esposa, Elizabeth, não poderia encontrá-lo na rotina diária de ir à praia e contemplar o pôr do sol, devido a uma reunião após o expediente na Construtora Alves, onde ela trabalhava. Ele releu a mensagem mais algumas vezes antes de enviar a resposta:

“Tudo bem, amor. Estou saindo do hospital para ir à praia. Não se preocupe com o horário, irei buscá-la na empresa. Amo você, beijos!”

A mensagem foi enviada às 17h05.

Não demorou muito para que uma nova notificação tocasse em seu celular. Um breve sorriso abriu-se em seu rosto moreno, revelando uma covinha no lado esquerdo, mostrando com sutileza sua alegria. Ele não chegou a ler a mensagem de sua esposa – talvez isso o tivesse poupado de algumas horas de preocupação – pois seu celular desligou no momento em que abriu o aplicativo de mensagens.

– Sabia que deveria ter colocado isso para carregar – ele disse enquanto tocava em sua barba quadrada, que combinava com o corte de cabelo undercut, e em seguida entrou no carro.

(...)


Saiu com o carro da Av. Cosme Ferreira e entrou na Av. Efigênio Salles. O trânsito estava mais tranquilo do que o habitual, especialmente próximo ao final de semana do mês do Carnaval.

“Eliza não estaria estressada se estivesse aqui”, ele sorriu.

– O trânsito é um horror – Elizabeth admitiu nos primeiros meses de namoro. Na época, eles costumavam utilizar o transporte público para fugir das responsabilidades impostas por seus pais.

Ele riu ao recordar as memórias de anos atrás, das aventuras compartilhadas com Elizabeth, Bárbara e Victor, seus melhores amigos. Também riu ao lembrar das piadas dos outros alunos quando ainda estudava no Colégio Latu Sensu, por seu estilo diferente dos demais. Ele nunca se importou com os comentários maldosos, pelo contrário, respondia com educação, seguindo o exemplo de sua mãe. Tudo isso aconteceu no final dos anos noventa e início dos anos dois mil. A adolescência foi um marco e, mesmo depois de catorze anos, ele ainda se lembrava do garoto Leonardo Garzes de all stars pretos, piercings e munhequeiras. Lembrou também das amadas camisas xadrez de flanela que usava enquanto passava horas dentro de um ônibus lotado apenas para tocar violão na praia enquanto observava o pôr do sol.

Com o trajeto tranquilo na Av. Coronel Teixeira, ele conseguiu chegar pontualmente à praia e estacionou o carro na mesma vaga de sempre. Caminhou até a praia cantarolando “Heartless” da banda The Fray, retirou os sapatos e sentiu a velha sensação de alegria ao pisar na areia, o que o fez lembrar da primeira vez que esteve ali com sua mãe. Ao observar os pequenos banzeiros do Rio Negro se desfazendo ao tocar a areia, crianças brincando de vôlei com adolescentes e soltando risadas altas, as cores alaranjadas se misturando com os tons rosados do pôr do sol, ele sentiu que era o cenário perfeito aos seus olhos castanhos.

– O melhor lugar de todos – disse sua mãe em sua última visita à praia. – É com essa paisagem que quero partir, meu amado filho.

– Mamãe, não fale assim. A senhora ainda viverá muitos anos – Leonardo segurou suas mãos frias, que um dia haviam sido quentes.

– Não, não irei – suspirou cansada pela doença que lentamente a consumia. – Espero que você continue vindo aqui após a minha morte, por favor, me prometa isso.

Leonardo balançou a cabeça, seus olhos cheios de tristeza:

– Vou continuar vindo aqui, mãe... vou trazer meus filhos que terei com Elizabeth.

– É uma pena que não tenha visto meu único filho se casar com o amor da sua vida – Martha olhou profundamente para ele. – Sei que foi sua escolha e sempre lhe apoiei, torço para que seja feliz, mesmo que eu sinta o contrário.

– Ela é meu amor verdadeiro, mãe – respondeu ele confiante.

– Tudo bem, se você acredita nisso, então só me resta crer – Martha encostou sua cabeça no ombro do filho.

– Obrigado, mãe, por aceitá-la.

– Apesar de eu preferir a Bárbara – confessou.

– Claro que não, ela é apenas minha amiga.

Uma brisa suave acariciou seus rostos e ambos riram. Leonardo abraçou sua mãe.

– Obrigado por ser minha mãe – beijou sua testa.

– Obrigada a você por ser esse filho de coração tão puro que tive o prazer de chamar de meu. Você é o melhor presente e o maior milagre que a vida me deu – Martha enxugou as lágrimas do filho. – E nunca deixe de amar, você merece todo o amor do mundo.

Aquela foi a primeira e última vez que Leonardo viu os orbes azuis brilharem após a descoberta do câncer. Ele a admirou por longos minutos até perceber que Martha já não respirava.

O sol vagarosamente foi se pondo. A lua e poucas estrelas iam despontando no imenso firmamento da metrópole, o ar antes suave agora causava em sua pele pequenos arrepios. Conforme o dia findava, as pessoas saíam de seus trabalhos cansadas ou felizes por mais um dia concluído. Ele, porém, seguia com seu contentamento habitual, observando a despedida do Astro Rei aos seus súditos, pois acreditava em uma razão mais plausível. Carregava consigo a crença de que o pôr-do-sol era mais uma chance que a Divindade entregava aos seres humanos. Com sua partida, surgiam oportunidades de nascer, morrer, crescer, aprender, superar, perder, ser venturoso e, principalmente, perdoar. Isso bastava a ele, e agradecia a Martha todos os dias pelos ensinamentos que recebera ao longo dos dezoito anos ao lado dela. A ausência de sua existência habitava em sua alma.

Ele fingiu não escutar, como sempre, os comentários de um grupo de amigos que caminhavam para gazetar a aula da faculdade ou de uma senhorinha com um neto traquina. Geralmente, as pessoas estranhavam vê-lo diariamente ali, sem emitir algum som ou praticar qualquer tipo de atividade física. Ele simplesmente sentava-se com as pernas cruzadas, com um olhar extremamente grato e contente, e, no fim do poente, parecia fazer um tipo de agradecimento. “Certamente sofre de alguma doença mental”, comentou um dos jovens, talvez um estudante de psicologia, para os demais colegas do grupo enquanto compartilhavam um cigarro. “Vez ou outra aparece um caso igual ao dele na clínica da minha família”. O grupo inteiro gargalhou.

Ele ouviu os comentários e murmurou:

– As universidades de hoje em dia estão formando profissionais super empáticos.

Convivia com aqueles comentários há anos e sabia que era melhor ser considerado um insensato do que um insolente perante as maravilhas naturais que seus olhos podiam enxergar e compreender.

Afinal, o que iria fazer? Sempre fora assim e seria assim até o dia de sua morte.

Naquela noite, não havia muitas estrelas no céu, evidenciando sinais de chuva antes das 20h30. Levantou-se, batendo a areia de sua calça branca. Precisava buscar Elizabeth na Construtora Alves e, como não fazia ideia de que horas seriam, resolveu perguntar a um casal que vendia churrasquinhos. Para sua surpresa, já passava das 19h30 e sua esposa provavelmente estaria perto de sair do trabalho. Agradeceu ao casal e dirigiu-se à empresa.


(...)


O chaveiro passeou entre seus dedos da mão esquerda, enquanto pensava em qual restaurante levaria sua esposa para jantar. Elizabeth não gostava da comida típica da região norte, então Leonardo descartou todos os restaurantes com esse cardápio. Há tempos não saíam para desfrutarem de um tempo de qualidade juntos, às vezes devido aos plantões dele ou quase sempre por conta das reuniões do trabalho dela, que acabavam tarde da noite.

– Hmm – soltou um som de entusiasmo ao ver o restaurante escolhido – Elizabeth vai adorar!

Ao adentrar a recepção, com tons pretos e quadros dos principais donos da Construtora Alves, totalmente espelhada e sem nenhum vaso de planta para deixar o ambiente mais acolhedor, Leonardo sentiu um calafrio percorrendo toda a extensão de sua espinha. Se fosse um homem supersticioso, diria que foi um pressentimento, mas como não era, simplesmente ignorou, preferindo acreditar que era o toque do vento gelado, já que a chuva começava a cair.

– Boa noite, Magda – cumprimentou a mulher de cabelos loiros e olhar vago. – Sabe me dizer se a Elizabeth ainda está em reunião?

A recepcionista, Magda, engoliu em seco e esboçou um meio sorriso sem graça no canto da boca. Olhou para os lados, certificando-se de que não havia mais ninguém ali, enquanto se decidia, com apreensão, se mentiria ou falaria a verdade. Não estava em seus planos enganar o amigo do seu irmão. Respirou fundo. Apesar da voz em seu interior a aconselhar a não se meter nos problemas pessoais de outras pessoas, pois já tinha os seus demais, tomou a decisão de fazer o certo.

Afinal, não era justo.

– Boa noite, Leonardo. S-i-m ... sim, a dona Elizabeth está – sua voz soou trêmula, em meio ao nervosismo. Fez uma pausa, controlando o que diria, e continuou: delatando o nome do seu chefe, – na sala do Senhor Victor. Agora, se puder me dar licença, preciso ir. E boa sorte.

Leonardo observou a recepcionista sair rapidamente de seu campo de visão, sem ter a oportunidade de desejar a ela uma boa noite ou até mesmo perguntar o motivo de ela ter dito “sinto muito”.

Deu de ombros, com o cenho franzido, sem compreender o motivo do nervosismo dela.

O que estaria acontecendo para deixá-la daquela forma?

Enquanto apertava o décimo andar do elevador, perguntou a si mesmo se esperaria ou não pela esposa na recepção. Por fim, optou por continuar subindo até o último andar da empresa, onde ficava a sala da presidência. Afinal, uma surpresa não faria mal a ninguém. Ao sair do elevador, encontrou o corredor vazio, diferente do que costumava ser em horário comercial. A mesa da secretária pessoal de Victor não tinha mais ninguém, e ele não estranhou esse detalhe. Caminhou lentamente até a sala e, por um certo acaso do destino, a porta não estava fechada, o que o levou a não bater na porta.

Propositadamente, a porta estava aberta cerca de trinta centímetros, permitindo que Leonardo visse, sem ser notado, a sala da presidência. Uma enorme mesa em formato de L, em tom escuro de madeira, uma estante com livros de arquitetura e design de interiores, e uma ampla janela de vidro, com cortinas brancas com detalhes listrados de preto, destacava-se, revelando duas silhuetas próximas do nome desenhado em letras douradas, seguido do emblema da empresa: Victor Alves, Presidente e Fundador da Construtora Alves. Perplexo diante daquela imagem, Leonardo fechou os olhos mais de dez vezes. Sua boca não emitiu o som da frase “o que diabos isso significa?” e suas pernas não responderam ao comando de se aproximar dos dois indivíduos. Sem dúvida, era a pior cena que ele já havia presenciado em toda a sua vida. chuva se encarregaria disso.

– Do que está rindo, garota? – ele perguntou.

– Ei, ele fala! – Ela exclamou. – Pensei que você fosse mudo, cara.

Leonardo resmung

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